Desajuste Fiscal do RN: O Passado que Não se Pode Apagar

POR José Arnaldo Fiuza Lima*

Temos reiterado nos artigos que estamos a redigir à sociedade potiguar que atualmente as duas imediatas razões financeiras para a grave crise fiscal que atravessa o Estado do RN são o déficit previdenciário e os elevados valores dos duodécimos, não desprezando os motivos de cunho gerencial, muito menos os de natureza política, pois, em análise aprofundada, são estes e não somente àqueles a real, histórica e verdadeira fonte do que ora se passa em terras potiguares.

Causa revolta e indignação o atual discurso propagado e repetido por nossos políticos, desde o Governador do Estado até parte dos parlamentares federais e estaduais, quanto à necessidade de se aprovar o pacote fiscal contido no "RN Urgente", sob uma falaciosa argumentação, em que concomitantemente cada um deles busca se eximir de qualquer culpa pela crise fiscal em que estamos inseridos, como também tenta nos convencer que, em busca da necessária saneabilidade das contas governamentais, não devemos olhar "para trás", "no retrovisor", apontando culpados, mas sim, somente com a visão no presente e no futuro, buscarmos resolver o hodierno problema financeiro.

Se estivéssemos em um circo, esta prosa seria motivo para boas gargalhadas, mas dita por nossos governantes, soa como chacota, zombaria, para com toda a sociedade norte-rio-grandense, principalmente, para com os servidores públicos, àqueles que pagarão praticamente sozinhos a conta dos desmantelos históricos que aconteceram e ainda hoje continuam a ocorrer no RN. Vejam, o passado que querem "apagar", em pleno ano eleitoral, é que gerou o presente que estamos a enfrentar.

Sabemos que nada é de graça na vida. Tudo tem um preço. Só que o preço dos erros e ilícitos do passado, por aqui, não é bancado por quem os praticou ou deles se beneficiou, mas por toda a sociedade potiguar, via majoração da carga tributária, e pelos servidores públicos, via supressão de seus direitos e aumento de contribuição previdenciária. Por isto, não podemos deixar que o passado seja apagado, que ilícitos administrativos, crimes e dívidas sejam perdoados, anistiados e esquecidos, sob o risco do subdesenvolvimento econômico e social no nosso RN se perpetuar, como já vem ocorrendo na nossa política, onde tradicionais famílias se revezam no Poder há muitas décadas, transmitindo-se entre si cargos e mandatos públicos, de pais para filhos e netos, de um cônjuge para o outro, de irmão para irmão, em verdadeiros feudos eleitorais familiares, onde a sociedade, tratada como meros camponeses, sempre sai perdendo, perdurando-se no Estado a pobreza.

Neste pacote do "RN Urgente" (em que importa falar, que no seu bojo tem algumas medidas positivas para o momento, como as que tratam de compensação de duodécimos, extinção de órgãos, parte do projeto de lei sobre a securitização de créditos inadimplidos, venda de imóveis e outros ativos, desde que não tenham função social/estratégica), e nas posições dos titulares de Poderes e de vários deputados, temos exatamente a reprodução da mesmice política e administrativa que nos levou, com o tempo, à atual e gravosa crise financeira. Nesta toada, discorramos agora, analisando suas duas principais causas financeiras, déficit previdenciário e os elevados valores de duodécimos.

Quanto aos duodécimos dos Poderes, já apontamos no artigo "Crise Financeira do RN: Números e Poderes", que, de 2010 a 2016, em virtude de orçamentos inflados, foram previstos mais de R$ 10 bilhões de receitas que jamais se realizaram, que propiciaram transferências indevidas de cerca de R$ 1,5 bilhões aos Poderes e órgãos autônomos e a formação, nestes, de sobras financeiras, mesmo com gastança abusiva com pagamento retroativo de cinco anos de auxíliosmoradia, compra de carros de luxo para uso de desembargadores e outras autoridades, contratação de servidores fantasmas, pagamento de elevadas verbas de gabinete etc, tudo isto evidenciando que os valores destes repasses são bem superiores aos necessários, caso o emprego dos recursos públicos fosse executado de forma mais racional.

Diante desta realidade, é indiscutível a necessidade de se rever, já para o exercício 2018, os montantes dos duodécimos a ser repassados aos Poderes/órgãos autônomos, mas estamos sentindo que não há por parte dos deputados estaduais a intenção concreta de que isto ocorra, haja vista, a guisa de exemplos, a inconstitucionalidade alegada na Comissão de Constituição de Justiça da Assembleia Legislativa, em que se rotulou o tema como "sequestro de duodécimos", quando da votação da Mensagem nº 172, bem como se prestam para explicitar a vontade lá reinante as argumentações jurídicas que estão sendo construídas na "casa do povo" para impedir a aprovação do art. 1º do projeto de lei contido na Mensagem nº 183.

A argumentação da inconstitucionalidade do PL da Mensagem nº 172 se baseou, em resumo, no fato de que tal tema já é regulado pela LC nº 454/2011, em que já está imposta a responsabilidade pelo pagamento remuneratório do servidor cedido ao órgão/Poder cessionário. A deputada relatora da mensagem afirmou que não é necessária a aprovação desta medida, mas é só o governo cumprir a norma já existente. Ora, com as devidas venias quem está a descumprir tal ditame legal são principalmente os Poderes/órgãos cessionários, entre eles a própria Assembleia Legislativa, que não pagam ao Executivo a remuneração dos servidores cedidos.

Entretanto, tratando-se de cessão entre os Poderes do Estado, inexiste na citada lei a forma como este ônus deve ser arcado pago pelo órgão/Poder cessionário, motivo pelo qual o Executivo vem, até os dias atuais, bancando com tal despesa, pois o ressarcimento como mecanismo para este fim só é previsto para as cessões de servidores deste Estado para os demais entes federados. De fato, como este assunto é regulado por lei complementar, somente norma de ígual natureza e não uma mera lei ordinária poderia tratar da matéria. Aí reside sua fragilidade jurídica, que pode ser saneada com o envio de um PLC, pois ao contrário do que afirmado na CCJ, tal mensagem não busca sequestrar duodécimos, mas reduzir de seus valores, na forma legal, os gastos que o Executivo tenha com os servidores cedidos aos demais Poderes/órgãos autônomos.

Há outras mensagens relativas à compensação de duodécimos, mas já transparece a tendência de que nenhuma delas seja aprovada, com a frágil tese jurídica exposta no parágrafo precedente, que, subliminarmente, demonstra que não há vontade política para a redução na gorda fatia do orçamento que hoje possuem os Poderes e órgãos autônomos. Quanto ao problema financeiro da previdência estadual, o Governo busca parcialmente resolvê- lo, em suma, além da compensação nos duodécimos quanto ao déficit previdenciários dos servidores de cada Poder/órgão autônomo, que conforme acima dito, tende a não ser aprovada na Assembleia Legislativa, com também a adoção de outras duas medidas: instituição da previdência complementar para os futuros servidores públicos e aumento da contribuição previdenciária.

A previdência complementar, ao contrário do que se divulga, só agravará a crise financeira do Regime Próprio de Previdência Social – RPPS/RN, pois na futura contratação de novos servidores que percebam salários superiores a R$ 5.531,31 (teto do Regime Geral da Previdência Social – RGPS), estes só contribuirão para o atual sistema previdenciário sobre a parte de sua remuneração até este patamar pecuniário susum, reduzindo assim receitas vindouras potenciais que se prestariam a minimizar o déficit previdenciário.

Urge esclarecer que nesta modalidade de previdência, só os valores de contribuição são definidas, os referentes aos benefícios previdenciários, não, correndo-se o risco de que daqui a 40 anos, quando as aposentadorias dos novos servidores vierem a ser concedidas, caso o dinheiro poupado venha a ser mal aplicado ou as instituições bancárias em que eles estiverem depositados vierem a ser liquidadas, como foram BANDERN/BDRN, de que os valores a ser pagos aos futuros aposentados/pensionistas sejam irrisórios, como hoje ocorre no Chile, país da América do Sul que primeiro implementou modelo de previdência nestes moldes, na década de 80 do século passado.

Ademais, os recursos da previdência complementar advirão da contribuição, em ígual montante, promovida pelos novos servidores e pelo Governo, formando uma poupança para o futuro. Tal ideia nos leva ao seguinte questionamento: qual a lógica de se poupar recursos para o futuro, quando não se tem no presente sequer o suficiente para pagar as atuais aposentadorias e pensões, fato que motiva o governo a sacar, mesmo com multas elevadas, das aplicações do FUNFIRN? Devemos lembrar que na previdência social vige, entre outros princípios, o da solidariedade contributiva entre gerações, de forma que os servidores da ativa contribuem não só para bancar os seus benefícios previdenciários, mas também para que o sistema tenha recursos para pagar os daqueles que já estão na inatividade. Portanto, ao se instituir previdência complementar, reduzem-se futuras potenciais receitas, agravando assim o déficit previdenciário. Logo, tal proposta é maléfica aos interesses do Estado, dos futuros servidores públicos e dos atuais aposentados e pensionistas.

Quanto ao aumento das contribuições previdenciárias, posto na Mensagem nº 118, não há como negar que isto propiciará redução do déficit atual do sistema, pois haverá incremento de receita, apesar de insuficiente para o seu equilíbrio, permitindo, por conseguinte, que o Governo venha a fazer, em curtíssimo prazo, menor aporte de recursos do orçamento fiscal no orçamento da seguridade social. Entretanto, também é inegável que serão os servidores públicos, na forma proposta pelo Governo, que terão que pagar esta conta, originada de sucessivas más gestões no sistema previdenciário estadual, que, por muitos anos foi superavitário, sem que seus recursos fossem corretamente aplicados, pois se assim tivessem sido, hoje, se prestariam ao pagamento tempestivo das atuais aposentadorias e pensões.

Aqui, o passado de más gestões e de uso indevido dos recursos da previdência estadual para fins diversos está a condenar, no presente, os atuais aposentados e pensionistas a não receberem, em dia, os seus proventos. Quanto a outras mensagens legislativas, tratemos algumas, em rápidas pinceladas. No que toca à venda das ações da Potigás e de imóveis públicos, o que nos parece mais gravoso nestas propostas é que nelas não estão direcionados como os recursos financeiros que advirão destas operações serão aplicados.

Ora, como estamos diante de uma situação fiscal bastante delicada, nada mais razoável que os valores destas alienações sejam empregados no sistema previdenciário, de forma a reduzir o seu déficit e assim minorar o aporte de recursos do orçamento fiscal, melhorando assim o fluxo de caixa da conta e, indiretamente, atacando o problema dos atrasos salariais. Mesmo destino deve ser prioritariamente dado aos recursos que advenham da securitização, caso o PL da Mensagem nº 176 venha a ser aprovado. Nesta proposta, que carece de ajustes, tem uma ilegalidade gritante posta no art. 10 do PL, ao se prever a securitização de todo o patrimônio imobiliário do Estado, por dois motivos: primeiro, não se securitiza ativos imobiliários, mas sim ativos financeiros (que podem até estarem relacionados a imóveis, desde que eles estejam vinculados a operações de crédito, tal como a de uma hipoteca), segundo, porque bens estatais afetados a uso especial/específico não podem ser vinculados a qualquer tipo de operação de crédito ou de alienação, mesmo que isto se dê de maneira indireta.

Ainda quanto à análise geral acerca do "RN Urgente" e dos debates que vem sendo travados na Assembleia Legislativa, como já aprofundado no artigo "A Quem Interessa a Mensagem nº 159?", reafirmamos que esta mensagem legislativa, do "refis do BANDERN/BDRN", é, pela imoralidade e falta de transparência que supostamente as envolve, a mais emblemática demonstração de como historicamente vem sendo usada a máquina estatal no RN, que, por um lado, sufoca a maior parte da sociedade potiguar e os servidores públicos, mas por outro, beneficia pequenos grupos, formados por grandes empresários e por certos políticos, que por diversas vias, inclusive a dos benefícios tributários, se locupletam dos já parcos e insuficientes recursos públicos, em detrimento de toda a população das terras do saudoso Câmara Cascudo.

Assim, ao que tudo está indicando, no fim das votações do "RN Urgente", se depender da vontade da maioria de nossos políticos, não haverá redução via compensação nos duodécimos do Poderes, mantendo-se assim todas as regalias que por lá existem, serão dispensados e anistiados quase a totalidade dos juros, encargos moratórios e multas dos grandes empresários e políticos que contraíram dívidas milionárias e nunca as pagaram nos dois liquidados bancos estaduais, será autorizada a venda de patrimônio público, sem sequer impor-se legalmente o destino dos recursos dela advindos, e, como sempre, a parte mais frágil de todo este processo (os servidores públicos), sem culpa alguma, arcará praticamente sozinha com o ônus do ajuste fiscal e da crise, que mais do que financeira é de gestão, que vem sendo construída há décadas, desde o passado, que agora nossos governantes querem apagar, mas que não permitiremos que isto aconteça e nem nos esqueceremos disto quando, em outubro próximo, formos novamente às urnas escolher nossos futuros representantes. .

.. Para finalmente concluir, como não existe nenhuma vontade política para se mexer nos duodécimos, só neste mês, já foram repassados R$ 133 milhões para os Poderes e órgãos autônomos, enquanto que os servidores do Executivo que ganham 1 mísero salário mínimo não receberam o décimo terceiro, nem sequer o salário de dezembro. Até quando isto perdurará?       

 "Aos amigos, os favores; aos inimigos, a lei"           

  Nicolau Maquiavel.

 

*José Arnaldo Fiuza Lima é Auditor Fiscal do Estado/RN

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